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A fotografia

Fotografia

Passando pela sala vazia, fitei aquela fotografia na parede, amarelada pela impaciência do tempo, emoldurando uma módica casa de muro baixo e plantas ao redor. Uma garotinha de vestido de bolinhas, sorriso de esguelha e olhar de quem nunca exigiu muito da vida, sentada num banco de cimento, chamou minha atenção. Tirei o retrato da parede, fechei os olhos e vaguei nas lembranças que me remetiam a um passado longínquo, a uma época em que meus sonhos poderiam ser realizados a cada amanhecer.

Caminhei em direção à garotinha, e, à medida que me aproximava, ela se distanciava.

Ameacei chamá-la, mas uma voz ressoou no infinito.

– Tomás!

Dei uma olhadela por cima do ombro. Ninguém. Voltei-me para a garota e seu olhar cruzou com o meu, e pude reconhecê-la. Então, a chamei.

– Íris.

Ela ignorou, e só pude vê-la entrando na casa, deixando um último vulto dos seus cabelos para trás. Aproximei-me e, mais uma vez, aquela voz se pronunciou, em tom mais elevado.

– Tomás!

Girei nos calcanhares, e não avistei ninguém, apenas uma praça. Caminhei por aquela rua estreita e, enfim, pude perceber que eram os cantos da minha Nova São Luís, a cidade da minha infância.

Percorri as ruas asfaltadas, com poeira se espalhando pelos meus pés, e causou-me estranheza a largura da rua, o tamanho da praça. Era como se tudo tivesse diminuído. O palanque estava depredado. Lembrei das vezes que brinquei naquele local; subia, descia, corria sem destino. Nostalgia que esmagava o peito.

Lembrei-me de Íris, dos seus cabelos soltos ao vento, enquanto ela corria entre os garotos, brejeira e livre. Seus olhos negros e expressivos transpareciam a eterna inocência de um virtuosismo inabalável, que, nem Aquiles, nem a miséria dos penosos tempos conseguiram deteriorar.

Como o tempo passou, como aquela época já fez tanto sentido. Segui mais um pouco, virei o canto da praça e tomei a direção da produção de ciprestes, enfileirados e harmoniosos. Logo, as lembranças daquela tarde chuvosa, em que Aquiles me surpreendeu com Íris, na singeleza dos seus 15 anos, me atormentaram. A surra, os apelos da filha, minhas vãs tentativas de tirar o cinto das mãos frenéticas e olhar colérico daquele pai errante me perseguiram por muitos anos.

Após aquela tarde em que vi Íris ser arrastada pelos cabelos, pela nossa praça, que nem em mil anos merecia presenciar tal brutalidade, pouco a encontrei. Aquiles a prendia em casa, em um cadafalso sufocante, impiedoso. Ia deixá-la e buscá-la na escola. A expressão cerrada definia seu temperamento impulsivo. Eram notórias as marcas que deixava pelo corpo da filha. O castigo por aquele encontro clandestino no meio dos ciprestes perdurou, e a ameaça, também.

– Se chegar perto de minha filha, se pelo menos olham para ela, juro que o mato! Maldito seja o seu pai. – Ameaçou, olhar duro e mãos trêmulas.

Meu aniversário de 17 anos fora no dia seguinte àquele encontro. Um dia pautado na melancolia. Só desejava estar perto dela, sentir, nem que fosse pela última vez, aquele beijo de descoberta, de insegurança e inocência.

A vela do módico bolo que minha mãe comprou se apagou lentamente. Foi como se algo, também, se apagasse dentro de mim. Sentei-me em um dos bancos da praça e por lá permaneci por um longo tempo. Meus olhares de espreita à casa de Íris eram incontroláveis, mas ela não aparecia, nem para escola foi naquele dia.

Já estava anoitecendo, quando resolvi voltar para casa. Só voltei a vê-la uma semana depois, passando pela rua com o pai, como se fora uma prisioneira dos próprios sonhos. Limitei-me a observá-la de soslaio, na esperança de uma olhadela para trás, ou ao menos um discreto sorriso. Inglória esperança. Íris jamais ousaria desafiar Aquiles, seu corpo bem sabia o padecimento que a aguardava em caso de contrariá-lo.

A Nova São Luís não passava por fase financeira saudável. A soja e o milho estavam em baixa. Meu pai penava para levar alguma comida para casa. Uma lata de feijão, ou de sardinha. Às vezes, alguns ovos, outras, um pedaço de carne, nos melhores dias.

Os negócios do sapateiro Aquiles também definhavam. Tudo era muito perceptível; as roupas folgadas, a diminuição das costas largas denunciava a situação da família. Pude notar a fisionomia abatida de Iris, em uma das raras vezes que a vi passar, como se fosse um vulto vagando na rua. A bochecha rosada havia desaparecido e o cabelo desgrenhado dava claras mostras da dura realidade.

Mas, mesmo com todos os percalços, percebi que ainda havia um fiapo de esperança no fundo daquele olhar. Poderia ser até um engano da mente, mas a coragem me dominou e vi meu peito se encher de entusiasmo. Pensei:

Não desisto de você, nem em mil anos.

Depois daquelas lembranças, saí do enfileirado de ciprestes e segui até o campinho de futebol, mais um que havia diminuído. Caminhei lentamente, queria recordar cada esquina, me lembrar de tudo que vivi naquela cidade. Ninguém nas ruas, só as marcas do tempo, cercas caídas, calçadas deterioradas. A grama, outrora tão verde, transformada em piçarra. De repente, a voz que me perseguia voltou a chamar.

– Tomás!

Lancei um olhar para trás, para os lados, mas não havia ninguém pelos cantos. Retornei, e passei novamente pela praça. Sentei-me no velho palanque, ou o que havia sobrado dele, e me pus a observar, com o olhar fixo, a casa de Íris. Abaixei a cabeça e mais recordações me vieram à mente.

Era uma manhã quente, quase não ventava, estava na amurada da minha casa, e avistei Íris ir para escola, mas sem a companhia de Aquiles, mas, sim, de uma prima. Não hesitei, corri ao seu encontro. Ao me aproximar, ela ameaçou recuar, mas, com um gesto, pedi para que me ouvisse. Íris consentiu, olhando para trás, com reticente.

– Preciso falar com você. – Principiei, fitando seus olhos.

– Se meu pai nos ver, sabe o que vai acontecer, não sabe?

Fiz que sim com a cabeça, e insisti. A acompanhei até o colégio e, durante o caminho, rimos, conversamos, até ameaçamos alguns passos de mãos dadas, sob o olhar de desaprovação da prima, mas ignoramos a sua presença e aproveitamos o momento, que se tornou mágico para nós.

Aquela manhã fora revigorante. Estar perto de Íris, mais uma vez, sentir seu calor, ouvir sua voz… Mas, acabou custando caro aquele encontro, pois não mais a vi durante o resto do ano. Tempos difíceis, de saudade, angústia e inquietação. Interceptei a prima, certa vez, na rua, e soube que as surras aumentaram, depois daquele dia. Aquiles acabou descobrindo tudo e decidiu mandá-la embora para morar com os avós, em um interior ainda mais distante.

A dureza de tanta selvageria me devastou. Nada parecia fazer sentido.

Foram quatro anos difíceis, quatro anos sem notícias, sem a imagem de Íris andando pela praça, correndo… Imaginava que poderia ter arranjado alguém, que poderia ter me esquecido, e gostaria de fazer o mesmo. Mas era como se estivesse me traindo, caso pensasse na possibilidade de esquecê-la.

Já tinha 21 anos e os hormônios despertavam pelo meu corpo. Casos, paixões efêmeras me ocorreram, mas o amor por Íris parecia incondicional, e era por ela que eu queria ser o melhor que pudesse.

Não tinha a mínima noção de onde ficava o interior dos avós dela, nem possuía condições de procurá-la. Foi quando Aquiles adoeceu, acometido por um câncer no pulmão. Definhou tão rápido que conseguiu até despertar minha compaixão.

Íris retornou para Nova São Luís, após quatro anos, e pude vê-la uma única vez, exatamente no dia do enterro do pai. Seu avô, pai de Aquiles, parecia carregar a reprodução dos atos violentos do filho, e uma aproximação se tornou inviável. Mas, um gesto me manteve vivo: aquele olhar ainda era o mesmo. Seu corpo havia mudado, como ela crescera, como estava ainda mais bonita, e ainda me olhava como antigamente. Podia sentir a pulsação do seu coração, a tremulação dos seus lábios querendo encontrar os meus. Queria dizer algo, sussurrar em seu ouvido, mas só pude vê-la se distanciar, sendo puxada pelo braço, como se aquilo fosse a herança maldita de Aquiles. Um aprisionamento dos seus desejos e a privação de poder escolher o seu real destino.

Lembranças que doeram por muito tempo no meu peito. Levantei a cabeça, e a casa ainda estava lá, a velha casa do sapateiro Aquiles, mas Íris não mais apareceu. Fitei a porta, a janela, olhei para o beco, nenhum sinal. Inclinei a cabeça, com os cotovelos apoiados no velho palanque, e vislumbrei o anoitecer que se aproximava. A voz insistiu.

– Tomás, vai me ajudar com o almoço ou vai continuar fingindo que está dormindo?

Abri os olhos, levantei da poltrona e pus o quadro de volta na parede. Olhei para trás e a vi se aproximar, me abraçando pelas costas.

Murmurou.

– Ainda tens aquele cheiro que nunca esqueci, daquele dia nos ciprestes.

Virei e a abracei, contemplando o olhar que me encantou desde o primeiro dia que a vi, e declarei, com os olhos apaixonados.

– Ainda és a minha menina, a luz dos meus olhos.

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Vinicius Bogéa

Jornalista e escritor. Membro da Academia Ludovicense de Letras (ALL) e Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política (AMCJSP). É autor de sete livros e editor do Jornal Pequeno.

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