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Sem ar

Sem ar

Assim como Dante, vejo que a razão, seguindo o caminho indicado pelos sentimentos, tem asas curtas. A penitência por amar demais é um preço que sempre julguei irrisório perante atender a chama do meu coração.

Foi assim no passado, se estabelece no presente. As marcas por aquela paixão são incapazes de sarar completamente. Não mais doem, é fato, mas ainda sinto quando as toco. Até julgo natural. Pois, o que seria de um futuro sem as lembranças deletérias do pretérito imperfeito?

Tenho alguns cabelos brancos a mais do que gostaria. O tempo é muito impaciente. Os anos que se passaram nunca serão capazes de amenizar. Só trataram de me deixar um pouco mais pesado e com a aparência, digamos, danificada. Alguém tem que pagar o preço.

Ainda lembro quando conheci a Lanna. Foi ela quem me fez rever o mundo com novos olhos e acreditar, mais uma vez, no amor.

Ela gostava de caminhar, todo fim de tarde, no Parque das Libélulas. Foi lá que nos conhecemos. Timidez sempre foi meu forte, mas não quando a encontrei pela primeira vez. O feitiço da lua que se advinha me despertou. Eu só queria tocá-la.

Tinha a pele macia, tão suave quanto a neve. Gostávamos de ouvir um ao outro. Às vezes, dizíamos em uníssono: “Adoro a tua voz”.

E eu adorava tudo nela. Não cansava de dizer: “Adoro teus cabelos” e “Adoro dizer seu nome, Lanna”.

Completos. Achávamos. Iludidos, talvez. Mas o que seria da vida sem um doce bocado de ilusão? É por meio de sonhos que encontramos o caminho para a felicidade. Ou não.

Numa dessas noites que o sono se impacienta com a quietude do alvorecer, me peguei insone, atormentado. Pensei em Lanna. Estaria Bem? Teria tido outra crise de asma e ido parar no hospital?

Lanna tinha certo receio de sua saúde frágil. Em seus devaneios, sempre achava que a morte lhe visitaria cedo demais. Parecia conformada. Aquilo me devastava. A possibilidade de perdê-la, não sentir mais o seu toque, nem ouvir a sua voz… Só pensar em tais possibilidades já me causavam convulsão.

Vi o sol saudar um novo dia, com a sensação de ter passado a noite totalmente em claro. Onde Lanna estaria? Como estaria? Na efervescência dos anos 70, não era tão fácil localizar uma pessoa. Restava esperar a tarde saudar o dia para ir até o Parque das Libélulas.

Um dia, dois dias, três dias, uma semana sem nenhuma notícia. O parque sempre vazio, nenhum vestígio do seu sorriso. A loucura começava a me fazer companhia, e eu só pedia aos céus uma pista do seu rosto para me alentar. A resposta era uma incógnita do tamanho do mundo.

Passei a perambular pelos cantos, me afogando em gelo e buscando uma maneira de me matar lentamente. Sem Lanna, era o que me restava. Ela havia desaparecido, e só me restava as lembranças de sua presença tão viva naquelas eternas tardes juntos. Há mistérios tão amargos que nos fazem viver da maneira mais doce. Foi como vivi enquanto a tive em meus braços.

Voltei para casa após um dia de peregrinação rumo ao nada. Os cômodos e estantes, vazios. Uma garrafa de vinho no chão me saudou. Bebi o que restava daquele líquido venenoso e adormeci no chão da sala.

Sonhei que havia a encontrado, perambulando pelas avenidas dos sonhos quebrados, afônica, sem ar: “Ramon”, “Ramon”, era quase uma súplica.

Tentei acalmá-la e, subitamente, senti seus olhos se esvaindo, perdendo a cor, totalmente opacos, e um forte abraço nos envolveu. Quando dei por mim, senti seu hálito queimar contra meu rosto.

Abri os olhos, e sua respiração seguia enfraquecida, mas estável, acompanhada de um sorriso provocante.

“Mesmo depois de todos esses anos, ainda consegue me deixar sem ar”, ela disse.

Senti um alívio olímpico ao despertar, e, então, era eu quem estava sem ar. A abracei com toda força, e não mais quis dormir naquela noite.

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Vinicius Bogéa

Vinicius Bogéa

Escritor e Jornalista. Autor de 6 livros, editor do Jornal Pequeno e titular da página cultural Conexão Pop.

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